Marco na luta por direitos no país, o sistema de cotas é uma ação afirmativa que busca superar a desigualdade em concursos públicos; saiba mais
Vitória Prates
Publicado em 19/11/2024, às 10h09 - Atualizado às 12h03Em novembro, a Câmara dos Deputados aprovou o PL nº 1958/21. O projeto de lei busca aumentar as vagas reservadas à pessoas pretas e pardas, indígenas e quilombolas. Em um cenário de 10 anos da Lei de Cotas, ainda há muito a avançar no Brasil.
Ações afirmativas, como cotas em concursos públicos, são uma política de diminuição da desigualdade social na administração pública. Saiba o que diz a legislação, opinião de especialistas sobre o tema e histórias de servidores.
Carlos Eduardo Pascoli vem de uma família de servidores públicos. Sua mãe, Rita, é cozinheira em uma escola, e sua irmã, Débora, auxiliar de enfermagem, no Hospital das Clínicas de Ribeirão Preto. Formado em Rádio, Locução e Operação de Áudio, Cadu, como é conhecido, trabalha como oficial administrativo no HC.
Na preparação, Cadu mesclava estudo das notícias, para se preparar nas questões de atualidades, e resolução de provas passadas. Todo dia um pouquinho de estudo, como ele explica. O esforço foi recompensado, Carlos foi aprovado em 1º lugar na Secretaria de Educação e em 10º no certame do Hospital das Clínicas. “Foi uma sensação incrível”, diz.
Cadu indica, para outras pessoas com deficiência, que não desistam do sonho de prestar um concurso. “O mercado de trabalho tem vagas para os PCDS, a gente tem a porcentagem de garantidas por lei, nunca deixa a oportunidade passar”, afirma.
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Cadu é portador de neurofibromatose. A doença genética produz nódulos na medula cervical. Com o diagnóstico, Cadu passou por 3 cirurgias, e adquiriu uma limitação no lado direito do corpo e dores crônicas.
“Eu sou um pouco mais devagar para digitar, por exemplo, mas os servidores do meu setor sempre me ajudam. Conhecem minha limitação e, desde o momento em que cheguei, foi feito de tudo para que eu me sentisse bem por lá, desde o RH até a chefia”, conta.
A reserva de vagas para candidatos com deficiência é uma obrigação de todos os concursos públicos do país, já que a lei n° 8.112 opera em amplitude nacional. Na legislação, em vigor desde 1990, até 20% das vagas devem ser destinadas a candidatos PCD.
Já em relação às cotas raciais, a história é mais recente. A Lei nº 12.990 entrou em vigor em 2014, e atinge apenas concursos públicos e universidades federais. Os demais estados decidem adotar ou não a política de reserva de 20% das vagas são a candidatos negros.
O cenário dos cotistas em concursos públicos vem mudando. O PL nº 1.267/2024 busca padronizar o número das vagas no ingresso para o sistema de cotas em concursos públicos. 50% das vagas são destinadas à ampla concorrência e os outros 50% à cotistas.
Dos 50%, 20% das vagas são para pessoas com deficiência, 20% para negros e 10% para hipossuficientes. O PL já foi aprovado, mas ainda não está em vigor. Por enquanto, as novas diretrizes afetam exclusivamente concursos públicos do Distrito Federal, sem alcance nacional. Saiba mais sobre essa e outras mudanças na legislação de concursos públicos em reportagem do Estadão.
A realização de um concurso público começa na escolha da banca organizadora. No Brasil, não faltam opções de organizações que se dedicam a planejar certames no país, uma delas é o Instituto Brasileiro de Administração Municipal (IBAM).
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Fundado em 1952, o IBAM atua no desenvolvimento institucional dos municípios brasileiros, o que inclui organizar iniciativas de seleções públicas. Desde sua inauguração, quando concursos públicos ainda não eram uma obrigatoriedade para ingresso nas instituições governamentais, muita coisa mudou nos certames do país.
Para Marcus Alonso, Superintendente de Organização e Gestão da instituição, o sistema de cotas em concursos públicos é fundamental. “Em um país tão desigual quanto o Brasil, é necessário ter políticas inclusivas e reparar injustiças históricas”, defende.
Em seleções públicas, o trabalho do IBAM começa na redação do edital e só termina após a aplicação das provas. O primeiro passo para elaboração do edital, reforça Marcus, é analisar toda legislação do município.
Muitos municípios têm leis próprias para cotas raciais. Alguns seguem a orientação federal, de 20% para candidatos negros, outros incluem indígenas e quilomboas na lista também e outros não tem as vagas reservadas na legislação municipal.
“O Brasil tem 5.570 municípios. A discrepância de um para outro é muito grande. O IBAM presta serviços de orientação técnica e jurídica para os municípios, e recomenda que as leis de reserva das vagas sejam editadas. Mas é uma questão muito complexa, que envolve o prefeito, a câmara e outros agentes”, fala.
Ainda sim, lembra Marcus, tem município que sai na frente da União. “O governo federal inovou na cota racial, mas, em relação a quilombolas, por exemplo, tem municípios que há 20, 30 anos já tem reserva de vagas para esse grupo em certames públicos”, conta.
E, para candidatos com deficiência, o trabalho da banca organizadora se estende para o momento da prova. No ato da inscrição, o candidato declara sua deficiência através do envio do laudo médico, com o CID. Depois, os participantes são alocados em um local de prova que tenha condições ideais de acessibilidade, equipe médica de plantão e aplicadores especializados.
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Durante a inscrição, o candidato diz se necessita ou não de alguma condição especial. Caso sim, o processo inclui garantir ledor, transcritor, prova ampliada, tempo adicional de avaliação, mobilidade e outras. “Essa é uma forma de garantir que os candidatos com deficiência consigam realizar a prova em condição igual aos demais”, explica.
Em 2024, a Lei nº 12.990 completou 10 anos. De lá para cá, muita coisa mudou no cenário brasileiro. Nas universidades, o ingresso por cotas aumentou em 167%, segundo o Censo da Educação Superior de 2022. De acordo com pesquisa do Datafolha, metade da população é a favor das cotas raciais nas instituições de ensino.
Por mais que a população negra seja maioria no país, representando 55% dos brasileiros, eles ainda são minoria no serviço público, e ocupam os cargos com as remunerações mais baixas. Para Marcela Timoteo, as cotas raciais são um dos principais mecanismos de reparação histórica, promoção da justiça social e equidade racial, tanto nos espaços de estudo quanto de trabalho.
A mineira atua como membro do coletivo Maria Firmina, da Rede de Mulheres Negras Líderes no Serviço Público e em outras iniciativas. Também servidora pública, Marcela começou a estudar as cotas raciais ao perceber a disparidade no uso das políticas afirmativas. “Muitos estados não possuem a lei estadual de reserva das vagas e outros órgãos autônomos também não a utilizam em seus certames”.
Além disso, para a especialista, as ações afirmativas são um meio de incluir pessoas extremamente capacitadas, mas que antes não tiveram oportunidade de ocupar certos espaços. “O sistema de cotas é fundamental para que a gente tenha uma força de trabalho mais diversa, eficiente e inovadora, no final das contas, a administração pública sai ganhando”, afirma.
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“Para o setor público, as cotas raciais em certames são de extrema importância para que a gente caminhe para um serviço público com a cara do Brasil, uma burocracia representativa”, diz. O conceito de “burocracia representativa” fala sobre a necessidade da administração pública representar o povo do país.
Nos cargos de elite, a desproporção entre servidores brancos e negros é ainda maior. Segundo dados do Observatório da Presença Negra no Serviço Público, os servidores públicos negros correspondem a 40% dos funcionários no Poder Executivo Federal e apenas 28% no Poder Judiciário.
Com os 10 anos da Lei de Cotas, o cenário começou a melhorar. Para Marcela, a instituição da política, em concursos federais, foi essencial para que algumas carreiras começassem a ter representatividade negra.
Ainda sim, é necessário, segundo Marcela, fazer melhorias. “É uma legislação muito importante, mas ainda não suficiente. Temos 10 anos da lei contra 300 anos de escravidão. Para chegarmos em um equilíbrio na força de trabalho do setor público, a política precisa ser aplicada de forma completa, em âmbito nacional”, afirma.
Para a especialista, outras questões ainda precisam melhorar, como:
Além de se autodeclarar no processo de inscrição, os candidatos, aprovados nas provas, que concorrem às vagas reservadas, participam de outro procedimento: heteroidentificação (candidatos negros e pardos) ou avaliação biopsicossocial (PCDs).
Para garantir que apenas pessoas negras e pardas tenham acesso às cotas raciais, a comissão de heteroidentificação avalia a etnia/raça dos candidatos. A banca analisa as características fenotípicas dos participantes. Depois, os membros votam entre si para decidir se o candidato faz jus ou não às cotas raciais.
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Já os candidatos com deficiência, passam por uma avaliação biopsicossocial. Esse processo deve ser realizado por uma equipe multiprofissional e interdisciplinar, entre profissionais da saúde, como médicos e fisioterapeutas, até assistentes sociais e psicólogos. Esse procedimento substitui a antiga perícia médica, em um modelo que busca maior inclusão social dos PCDs no serviço público.
O maior concurso público da história do Brasil, o Concurso Público Nacional Unificado (CNU) contou com 2,1 milhão de inscritos. Com vagas abertas para 21 órgãos governamentais, o CNU já é um feito inédito do país.
Na edição deste ano, 420 mil pessoas se inscreveram em vagas de cotas raciais e 54 mil candidatos solicitaram atendimento especial durante a prova. Esse último inclui tanto pessoas com deficiência e autistas quanto gestantes e lactantes.
Das adaptações da avaliação, o candidato pode solicitar salas de fácil acesso - para cadeirantes ou pessoas com dificuldade na mobilidade -, leitura labial, extensão no tempo da prova - candidatos com deficiência intelectual e déficit de atenção -, texto em braille ou prova ampliada.
No caso do CNU, foram disponibilizados 15 kits de provas especiais. Os candidatos que concorrem a vagas reservadas passaram pelo processo de heteroidentificação (negros e pardos) e avaliação biopsicossial (PCD). O resultado já foi publicado, saiba como conferir em matéria do Estadão Concursos.