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Como o concurso público pode transformar a vida de quem tem baixa renda?

Especialistas explicam como os cargos públicos são capazes de proporcionar ascensão social, além de estabilidade financeira; veja também dicas

Jennifer de Carvalho

Publicado em 20/11/2024, às 09h44 - Atualizado às 12h04
Diferentes iniciativas podem fazer com que os concursos públicos transformem a vida de muitos brasileiros. - Foto: cookie_studio / Freepik

Cargos com benefícios e plano de carreira: esses são alguns dos aspectos dos concursos públicos que muitas pessoas consideram como uma chance de ter uma vida financeira mais estável, além de ascender profissionalmente. Ainda mais em um cenário onde o Brasil é um país que apresenta desigualdades sociais em muitas camadas.

Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o rendimento médio, por mês, por pessoas de 14 anos ou mais, é de R$ 2.971 no Centro-Oeste e R$ 2.916 no Sudeste. Enquanto isso, no Nordeste, essa taxa é de R$ 1.736. Os dados são da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD), de 2022.

Ainda, em outra análise, o Instituto destacou que o ganho médio de trabalhadores brancos em 2021 era de R$ 3.099, enquanto o de pretos era de R$ 1.764 e o de pardos R$ 1.814.

Além disso, conforme o IBGE, até o 2º trimestre de 2024 foi constatado que 7,5 milhões de brasileiros estão desempregados – representando uma taxa de 6,9%. Em nota, o órgão destacou que o índice recuou um ponto percentual, em relação ao primeiro trimestre.

Com diferentes graus de escolaridade e diferentes faixas salariais, Raquel Medeiros, consultora educacional e pedagoga pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), destaca como os cargos públicos permitem que as pessoas tenham mais acesso a bens e espaços que elas não tinham antes. No entanto, ela ressalta: “O Brasil ainda é um dos países mais desiguais e com mobilidade social mais dificultosa em todo o mundo”.

Jociane Louvera, advogada e professora de Direito Processual Penal, complementa que o concurso é um tipo de processo muito considerado, devido à sensação de estabilidade. “Esse é um mecanismo para se ascender socialmente, uma vez que o serviço público conduz a pessoa por inúmeras carreiras, em que ela só sairá por demissão”, diz.

Muitas dessas seleções também são formas de contratar servidores públicos por seus desempenhos nas avaliações, e não por experiências profissionais anteriores – dependendo da função escolhida – ou por contatos com trabalhadores que possuem uma posição influente em uma determinada instituição.

“Em empresas grandes, existe uma forte importância sobre a formação da pessoa e as suas relações pessoais", destaca Laura Amorim, especialista em aprendizagem e preparação para concursos. Quando esses quesitos não são considerados por um concurso, ela pontua que o método é capaz de abrir muitas portas.

Desafios para a ascensão social por meio de concursos públicos

Ao lançarem editais de processos, muitos órgãos públicos destacam a possibilidade de alguns interessados solicitarem a isenção da taxa de inscrição. Uma das situações que podem ser requisitadas é a de inscritos no Cadastro Único para Programas Sociais do Governo Federal (CadÚnico). Outros certames consideram, até mesmo, cidadãos desempregados.

Porém, até mesmo a dispensa do pagamento de valores para a candidatura pode ser um processo burocrático, com regras complexas. Ainda, nem sempre essa alternativa contempla muitas realidades. Com isso, muitos acabam desistindo de se aplicarem na seleção.

“Também há as cotas raciais e sociais, mas é necessário ampliá-las. Uma das necessidades é incluir a questão do gênero, pois inúmeros cargos possuem uma aprovação maciça de homens (brancos), por conta de desigualdades anteriores aos concursos”, pontua Raquel.

“No Brasil, pelo menos metade dos lares são chefiados por mulheres, com renda média menor do que em lares chefiados por homens. Além disso, as mulheres dedicam mais tempo às atividades domésticas do que os homens, independente da condição da família”, comenta.

A consultora educacional lembra de uma convocação adicional de até 75 candidatas do gênero feminino para a segunda fase do Concurso de Admissão à Carreira de Diplomata (CACD), ainda neste ano de 2024, como uma maneira de alcançar uma igualdade de gênero. Mas ela destaca que ainda é preciso muito avanço nessa questão.

Além disso, algo que também afasta muitos candidatos de baixa renda dos concursos públicos são as despesas com determinadas etapas. Conforme Maria Eduarda Bataia, pedagoga e pós-graduada em Educação Inclusiva, os custos com transporte, alimentação e, até mesmo, fases de exames médicos, podem ser inviáveis para quem não possui recursos.

Essa barreira pode ser maior em seleções compostas por muitas fases, por exigir um grande investimento. “Às vezes a pessoa irá realizar um concurso policial em outro estado. Então, já tem o deslocamento para fazer a prova objetiva e discursiva. Depois, tem um teste de aptidão física e, em seguida, o psicológico", exemplifica Laura.

Inclusive, a especialista em aprendizagem e preparação para concursos relata que já ouviu depoimento de concurseiros que estavam se preparando para a área fiscal, por exemplo, mas que não conseguiram realizar a avaliação, pois o local era em outro estado.

Aliás, alguns editais destacam em seus tópicos que as organizadoras dos processos não se responsabilizam por custos de hospedagens. Por isso, é importante que sejam discutidas iniciativas que auxiliem os inscritos com os gastos que podem surgir no decorrer da seleção.

Já Jociane faz um alerta sobre a integridade dos concursos públicos. “Não é raro a ocorrência de escândalos na formatação deste ou daquele concurso, com vazamento de provas e seletividade obscura. Por isso, precisamos, com urgência, encontrar um filtro de confiança em todos os certames”, destaca.

Dicas de concursos públicos para candidatos com baixa renda

Apesar dos concursos públicos servirem como possibilidade para as pessoas de baixa renda desfrutarem de melhores condições de vida, isso não significa que o processo seja fácil. O problema vai além da desigualdade econômica, pois muitos interessados em realizar essas avaliações não tiveram uma educação básica de qualidade.

Conforme os dados do IBGE, quando se trata de jovens brasileiros entre 15 e 29 anos, por exemplo, 10.917 não estudam e não estão ocupados. Desse total, 4.115 são do Nordeste, 3.799 do Sudeste e 726 do Centro-Oeste. Ainda, 2.023 dos brasileiros nessa condição possuem até o Fundamental Incompleto e 6.130 contam com Ensino Médio Completo até o Superior Incompleto.

Em nota sobre o Censo 2022, o órgão destacou que em 2022, das 163 milhões de pessoas de 15 anos ou mais de idade, 151,5 milhões sabiam ler e escrever um bilhete simples, enquanto 11,4 milhões não sabiam. Com isso, a taxa de alfabetização foi 93% e a de analfabetismo foi de 7%. 

“Por questões não apenas educacionais, mas, especialmente, sociais e econômicas, muitos não começam a sua preparação do mesmo ponto que outros candidatos”, comenta Raquel.

Para os concurseiros que se encaixam nessas situações, Maria Eduarda indica a busca por cursos gratuitos, materiais online e grupos de apoio para auxiliar na preparação dos estudos. “Mantenha a determinação, cultive a paciência e aproveite, ao máximo, as oportunidades de auxílio que estão ao alcance”, diz.

Ela também orienta o monitoramento de sites e redes sociais de entidades públicas, além de plataformas voltadas para concursos. “Engajar-se em grupos de estudo na internet é benéfico, já que eles são espaços para troca de materiais e incentivo mútuo.”

Leia também sobre como se preparar para um concurso público nesta reportagem.

A Escola Virtual do Governo (EV.G) é outro recurso importante que pode ser usado. Conforme Raquel, a plataforma gratuita é voltada para a capacitação de servidores e cidadãos interessados em temas da administração pública.

“Atualmente, são disponibilizados 732 cursos abertos e 19 exclusivos, com mais de 78 trilhas de aprendizagem. Os cursos abrangem uma ampla variedade de temas, que vão desde Gestão Pública e Políticas Sociais até áreas específicas, como Análise e Ciência de Dados e Meio Ambiente", aponta a consultora educacional.

Ela ainda observa como essa ferramenta proporciona recursos essenciais para a formação e qualificação de candidatos em concursos – especialmente os de baixa renda, que muitas vezes não conseguem arcar com os custos de cursos preparatórios, por exemplo.

Utilize o método “concurso de escada”

O método “concurso de escada” consiste na busca por cargos que possuem menos requisitos, tanto na parte de formação quanto no conteúdo programático do edital. Nesse caso, vale optar por funções de Nível Fundamental ou Médio, para facilitar o acesso a um cargo público.

Conforme as especialistas, algumas indicações são os concursos estaduais e municipais, como em Bancos ou Câmaras, que possuem menos complexidade. Outra ideia é apostar nas seleções dos Correios e em funções como Assistente Administrativo, Técnico em Segurança e Atendente de Saúde.

A partir disso, será possível elaborar uma preparação mais aprofundada para uma ocupação de Nível Superior – com provas que possuem um maior grau de dificuldade e oportunidades com salários altos. Isso porque a aprovação nos concursos com menos exigências proporcionará uma renda estável para que a pessoa possa investir mais nos seus estudos, servindo como uma "escada".

O que deve ser melhorado para que os concursos sejam mais eficazes na ascensão social de candidatos de baixa renda?

Mesmo que alguns processos realizem as suas provas em cidades que não sejam apenas as capitais, os editais de muitos concursos públicos precisam ser criados de acordo com o nível do cargo ofertado. Segundo a advogada Jociane, os certames devem ser humanizados e elaborados cientificamente.

“Aquele que se candidata à função de Policial Militar, cuja escolaridade é o Ensino Médio, não pode ser questionado sobre Direito Constitucional, Direito Penal, Direito Processual Penal, entre outros”, aponta.

“Um concurso onde o teste de aptidão física reprova o candidato que obteve nota máxima em todas as disciplinas constantes do edital, devido a 1 segundo na corrida ou uma braçada na natação, não pode ser considerado sério ou, no mínimo, justo", complementa.

Ela ainda ressalta que o edital deve viabilizar o acesso de pessoas pobres e de jovens de classe média às oportunidades oferecidas pelo Estado, no mercado de trabalho.

Ainda, Raquel destaca que os certames poderiam oferecer acesso à bibliotecas de conteúdo oficial, com orientações para o estudo, além da explicação sobre conhecimentos essenciais e os métodos de preparação.

“O Concurso Nacional Unificado (CNU) começou a fazer um movimento interessante nesse sentido, com uma organização diferente na disponibilização de informações aos candidatos”, comenta.

Para a pedagoga Maria Eduarda, os concursos públicos são alterativas de inclusão e transformação de realidades – como o auxílio na redução da desigualdade social no Brasil. Mas esse meio só será devidamente efetivo quando as dificuldades financeiras forem reduzidas. “É necessário que o sistema se torne mais acessível para desempenhar a sua função social”, finaliza.

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